Número do anúncio | 2020592 |
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Data do anúncio | 12 Maio 2020 |
Status | Zero |
"A palavra dos Santos é uma das armas de Deus Todo-Poderoso; por meio delas, Ele conforta e reafirma o discípulo quando seu coração está triste." - Junaid
Do século XII, em seu quarto final, até 1987, o percurso do maravilhoso feixe de reflexões e iluminações místicas do sufismo foi muito longo, mas chegou finalmente ao Brasil. A Linguagem dos Pássaros, de Farid ud-Din Attar, publicado em bela edição pela Attar Editorial, 318 páginas, nos revela pela primeira vez o deslumbramento de uma das supremas meditações místicas mundiais: a linguagem desses pássaros é uma Iniciação ao caminho ético e divino, uma forma de Tao persa, que indica o comportamento moral correto ao seguidor de uma das mais belas e acessíveis ramificações do Islamismo. Farid ud-Din Attar não exibe nenhuma jactância vã quando afirma:
"Meus versos têm uma particularidade espantosa, que é dar mais e mais benefício à medida que se os lê".
Esse texto tantas vezes comovente dirige-se ao Intelecto, à compreensão e interpretação das mais altas verdades que a alma humana possa alcançar. Para nós, ocidentais, porém, é o coração o alvo dessas palavras revestidas de nobreza, desapego a todo e qualquer materialismo, regidas somente pelo amor ao próximo e o desejo ardente, radical, de se atingir a Origem, Deus, através dos percalços dolorosos da vida até se chegar à unio mystica com a Divindade. Como para Meister Eckhart, o grande místico alemão, ou para Plotino e seu universo pós-platoniano, Deus habita em nós e em toda a parte.
Esse livro é inteiramente metafórico. Tudo nele são alusões para um espírito sutil. Os pássaros podem ser anjos ou, em outra exegese, a próprios adeptos do Sufismo em busca de Verdade eterna e imutável. Uma das enunciações da doutrina islâmica que se refletem no Sufismo se baseia em um triângulo, cuja base é formada pela shari'ah e a hagiqah. Em termos mais claros: a religião positiva (a shari'ah) é o aspecto esotérico da Idéia (a haqiqah), e a Idéia, por sua vez, é o aspecto esotérico de religião positiva. A religião positiva é o símbolo; a Idéia é o simbolizado. O exotérico está em perpétua flutuação como as onda do mar, criando formas efêmeras de acordo com as épocas e nações do mundo. Já o esotérico é uma Energia divina, o fundo imutável dos oceanos, que não está submetido à trans-formação, ao devir. Por. tanto, a religião não pode assumir um caráter dogmático. Para se chegar até ela são necessários iniciadores gulas: a tarikah, ou o método ou meu entre os dois elementos componentes, a religião exteriorizada e o Espírito essencial da espiritualidade divina.
No Ocidente, a versão mais comum que se conhece da grandiosidade da poesia persa - que, ao contrário do que os autores indicam, por engano, não é uma língua oriental como o árabe, mas sim uma ramificação Indo-iraniana da família das línguas Indoeuropéias - são os versos de Ommar Khayyam. Superficialmente, celebrariam um hedonismo ateu em que os vinhos, a música, a poesia, as mulheres seriam os únicos prazeres desfrutáveis dentro do efêmero da vida humana. Outros veriam em Khayyam uma forma de blasfêmia. Outros exegetas insistem no simbolismo de toda essa alegoria: o vinho representa o êxtase da Busca de Deus; a taverna, o coração do místico; e o taverneiro é na realidade o "perfeito discípulo que conhece as qualidades de Deus".
Da mesma forma, neste A Linguagem dos Pássaros, a ave mais nobre, mensageira do Rel Salomão, a poupa, conduz outros pássaros rumo a Fênix, Deus eternamente ressurgido e resplandecente só 30 pássaros chegam até Simorgh, e Simorgh significa também sete pássaros, dai a identificação de Deus som a sua morada no coração e na alma do homem.
Desde a tradução francesa de Garcin De Tassy, em 1863, o livro de Attar (que significaria aproximadamente o perfumista, o mercador em essências fragrantes) vem aumentando uma lista de influências que seu renome teria tido sobre movimentos literários na Europa, como nos Contos de Canterbury do século XIV, de Chaucer, na Inglaterra, até o ciclo do Roman de la Rose medieval, assim como na cultura andaluza de Influência árabe na Espanha e até nos romances de cavalaria, sendo estudada freqüentemente por pensadores e poetas extraordinários da América Latina, como Jorge Luís Borges (em seu misterioso relato A Aproximação a Almotásim, em seu livro Ficciones) e Octavio Paz.
Para quem quiser se aprofundar no conhecimento dessa obra e do sufismo, os tradutores brasileiros aconselham a leitura de Frithjof Schuon (Da Unidade Transcendente das Religiões e O Esoterismo como Princípio e como Via, editoras Martins e Pensamento, SP; René Guénon, edit. Gallimard, Paris: Aperçus sur l'ésoterisme islamique e Le Taoisme, e Princípios Gerais do Sufismo, de Sirdar Ali Shah (Attar Editorial). Não incluo aqui a referência a Idries Shah, por ser extremamente controvertido o seu papel na verdadeira difusão e exegese do sufismo, não sendo, portanto, absolutamente, uma fonte de consulta confiável - é o mínimo que a seu respeito se pode dizer.
O leitor mergulhará, encantado, nesses relatos cheios de magia e dotados como que de dois planos. No primeiro, de forma longa ou brevíssima, narra-se um acontecimento. Na segunda parte está o conteúdo espiritual simbólico da narrativa, como que repetindo o aspecto formal, exterior, que costumamos reconhecer como religião; após, vem a essência, a energia interior, indissolúvel porque eterna e esotérica da Verdade divina.
Nem é possível escolher, entre tantos textos, o mais comovente, o mais belo, o mala repleto de ensinamentos morais elevadíssimos. Por exemplo, no trecho intitulado "Advertência da Poupa sobre a Viagem", depois de várias páginas, o leitor se recorda dos sofrimentos de Jó, abandonado temporariamente por Deus, no episódio do Velho Testamento. Aqui, um crente, um sábio do Islamismo abjura de sua fé, humilha-se, cuida de porcos, converte-se ao Cristianismo por amor a uma formosíssima moça cristã grega. Ela o submete a todas as provas, até aquela que o ameaça de perder sua alma para sempre no Inferno. Depois de uma peregrinação terrível de martírio, dor e pó, o velho amante consegue livrar-se daquela tentação e voltar à sua santidade e sabedoria iniciais, momentaneamente perdidas. Attar adverte, no final:
"Todos deixamos o mundo como o vento; ele se foi e nós iremos também. Tais coisas acontecem freqüentemente na vida do amor; sabe-o aquele que conhece o amor. Tudo o que se diz sobre o caminho espiritual é possível: há misericórdia e desespero, ilusão e certeza. Embora a alma de desejo não possa compreender estes segredos, a felicidade não será arrebatada pela mão da adversidade. É necessário ouvir com o ouvido do espírito e do coração, e não com o do corpo. O combate entre o coração e a alma concupiscente é terrível a cada instante. Lamentemo-nos, pois há motivo para lamentação".
Não se tire a conclusão errônea e precipitada de que se trata de um tratado de desespero e queixumes. Há histórias, se assim puderem ser chamadas, de suprema humildade, com a do sheik que permitia que um cão, considerado animal imundo pela crença islâmica, se deitasse sobre seu peito: que diferença fazia se por dentro o sábio conhecia seus próprios erros e achava que a sujeira de fora não destoaria da sujeira que continha dentro de si? Há ainda relatos de mortificações em busca da pureza que enfatizam o horror que se deve ter a todo fanatismo. Talvez um da momentos culminantes desse originalíssimo A Linguagem dos Pássaros (com seus raros deslizes de tradução) seja a "História de um Assassino", que merece ser transcrito em sua totalidade:
"Em sua ira, um rei castigou com a morte um assassino. Porém, na mesma noite da execução, viu-o em sonho passeando no jardim do Éden, satisfeito de sua feliz condição. 'És um assassino e viveste na infâmia', disse-lhe o rei. 'Como, então, te encontras neste lugar onde os que cometeram os crimes de que és culpado não podem entrar?' O assassino respondeu: 'Quando meu sangue corria pela terra, um amigo passou por ali. Era um santo pir (ou sheik, que, em árabe, significa homem muito sábio) muito avançado no caminho espiritual. Esse venerável personagem lançou-me furtivamente um olhar. Pela excelência desse único olhar, obtive a honra de que me vês possuidor, e mais cem outros favores de que nem tens idéia'.
Aquele sobre o qual recai um olhar afortunado adquire, no mesmo instante, a posse de cem segredos. Enquanto o olhar de um homem espiritual não cair sobre ti, como descobrirás a tua própria existência? Se permaneces no isolamento, não poderás abrir teu caminho até o trono dos céus. Precisas de um pir; não queiras caminhar sozinho, não entres às cegas neste oceano. Nosso pir é um guia seguro para este caminho e um refúgio para tudo. Quando ignoras completamente o que deves fazer para sair do poço do mundo, como poderás caminhar nesta via sem alguém que te conduza com um bastão? Não olhaste o suficiente para ver; o caminho não é curto, e o pir é o teu guia.
Aquele que descansa à sombra de um homem de posse da felicidade não se confundirá jamais. De fato, na mão daquele que está unido à felicidade, os espinhos convertem-se em rosas".
Kipling, afinal, vai sendo desmentido pela passagem do Tempo: o Oriente e o Ocidente cada vez mais se interpenetram, se entrelaçam, se fecundam mutuamente com seus tesouros místicos e sua raiz primordial comum de nostalgia de Deus, cada um seguindo seu Caminho, mas todos conduzindo a alma rumo à Verdade eterna.
Leo Gilson Ribeiro é crítico literário do Jornal da Tarde