Número do anúncio | 2020574 |
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Data do anúncio | 12 Maio 2020 |
Status | Zero |
Conta a tradi��o mu�ulmana que o pr�prio Muhammad (m. 632 d.C.), fundador da religi�o mu�ulmana, teria recomendado aos disc�pulos que se abstivessem de relatos sistem�ticos sobre as suas a��es. Seu argumento, deveras razo�vel e ponderado, era o de que, sendo ele um simples ser humano � embora investido de miss�o prof�tica, segundo a cren�a da religi�o que fundou � cometera tanto acertos como, eventualmente, erros, de modo que lhe registrar as a��es, conferindo- lhes car�ter sagrado, poderia consistir, aos olhos do vulgo, em legitima��o de atos nos quais ele porventura houvesse cometido algum equ�voco e depois se arrependido.
A recomenda��o foi quebrada menos de um s�culo ap�s a sua morte, com registros basicamente divididos em dois g�neros: de um lado, a sira, biografia propriamente dita, que obedece ao formato tradicional das biografias, relatando sistematicamente toda a sua vida, desde a origem e apresentando o claro prop�sito de fortalecer o moral dos mu�ulmanos com uma narrativa exemplar que enfatiza justeza e verdade da miss�o do profeta, bem como as suas fa�anhas, divinamente inspiradas, em defesa da nova f�; de outro, o hadith, conjunto de relatos sobre a��es, ditos e mesmo sil�ncios do profeta que foram utilizados como uma das fontes da legisla��o e da jurisprud�ncia isl�micas, ao lado do Alcor�o e da sunna, a pr�tica ortodoxa dos primeiros conversos ao islamismo. Nessa linha, o hadith � menos laudat�rio que a sira, pois obedece a determina��es diversas e mais eminentemente pragm�ticas, ao passo que a primeira, conquanto pudesse fazer parte dos rituais de adora��o, tamb�m servia, ocasionalmente, a prop�sitos mais ornamentais; embora seja natural o interesse pela figura do fundador de sua religi�o entre os mu�ulmanos, as inova��es no g�nero s�o relativamente escassas, com eventuais compiladores e historiadores retomando o que dissera Ibn Hisham e utilizando as fontes usuais do hadith. Mais modernamente, em especial a partir do s�culo passado, � que come�aram, de modo t�mido, a espocar novidades aqui e acol� no �mbito do isl�.
O pioneiro na vertente da sira (biografia) foi Ibn Ishaq (m. 768 d.C.), cuja obra, pelo visto controversa, se perdeu, tendo sido resgatada e reescrita mais tarde por Ibn Hisham (m. 828 d.C.), que deu � narrativa sobre a vida de Muhamad o formato tradicional geralmente aceito at� hoje, caracterizado por uma aura sagrada e honor�vel. J� na segunda vertente, o hadith, a palma cabe com todos os m�ritos a Muslim (m. 875 d.C.) e Al-Bukh�ri (m. 870 d.C.), compiladores e sistematizadores de grandeza �mpar. Ali�s, esse segundo g�nero, o hadith, teve enorme fortuna, com a produ��o de in�meros tratados ao longo dos s�culos, fato esse assaz compreens�vel caso se leve em conta a sua import�ncia para a pr�pria legisla��o mu�ulmana, a shari�a.
Ao contr�rio do program�tico convencionalismo das biografias escritas em terras do isl�, no Ocidente, conforme seria de se esperar, os diferentes interesses em torno da personalidade do profeta bem como do pr�prio isl� tornam a oferta mais variada, e isso desde os prim�rdios, na Idade M�dia, com textos que v�o da diatribe mais aberta � proposta de concilia��o, passando, tamb�m, pelo desejo honesto de compreender essa alteridade.
Moderna, a biografia do ingl�s Martins Lings (1909-2005), Muhammad, � mais uma tentativa, decerto a mais bem lograda no Ocidente, de tornar leg�vel a biografia e os feitos do homem que lan�ou um dos maiores desafios que a cristandade teve de enfrentar. Convertido ao isl�, Lings, cujo nome �rabe era Abu Bakr Siraj Ad-Din, escreve um texto cuja raridade est� justamente num h�bil cruzamento a que poucos se arriscam: seu relato, por um aparte, utiliza com abund�ncia, generosidade e respeito as fontes tradicionais, sem se deixar envolver por modismos cr�ticos aplic�veis ao caso; de outro, n�o abre m�o do rigor de explana��o, com notas, remiss�es e cita��es constantes, que conferem um cunho de legitimidade acad�mica ao seu trabalho.O resultado � um texto escorreito, cuja flu�ncia se l� com agrado, e aderente ao ponto de vista das fontes, plenamente justificada pela convers�o do autor,mu�ulmano devoto. Essa ades�o se faz de maneira bastante sutil,com recursos po�ticos na medida certa, sendo poss�vel citar como exemplo todos os relatos sobre eventos por assim dizer sobrenaturais, os quais, recolhidos nas fontes primitivas onde se encontram descritos, s�o reproduzidos com tal habilidade pelo autor que o leitor passa ao largo de sua �cumplicidade�, diga-se assim, com o biografado.
Enfim, um arabista n�o poderia ainda deixar de ressaltar, ao lado da qualidade material da edi��o, os cuidados com a transcri��o dos nomes �rabes, o que � inusual em muitas obras similares. Sem temer o risco de causar estranhamento no leitor, a edi��o n�o hesita em lan�ar m�o de diacr�ticos nas letras latinas a fim de ficar mais pr�xima dos sons do original. Assim, o leitor n�o deve surpreender-se ao encontrar, logo na capa, a palavra Muhammad do t�tulo com um pingo sob o �h� para transcrever um fonema fricativo laringal surdo que existe em poucas l�nguas al�m do �rabe.
Mamede Jarouche � professor de Literatura �rabe na USP